Morte duma general
O escritor Rui Cardoso Martins faz o obituário de Teresinha da Paixão Gomes, aliás Tito, um transexual que veio ao mundo ainda antes de "haver" transexualidade. Foi ele que cobriu para nós o julgamento em 1993
a O general Tito, falecido há dias, sozinho, aos 74 anos, numa casa isolada do mundo com chapas de zinco, cruzou uma vez o olhar comigo, em 1993. Ele estava no seu blaser azul, as calças cinzentas engomadas, a gravata de seda, o cabelo platinado. É quase certo que eu ia mal vestido (jovem da imprensa escrita). Virou-se no banco dos réus, e olhou-me três segundos com curiosidade, como a um "parasita" nas suas costas. Era assim que ela chamava aos jornalistas, no Tribunal da Boa Hora.O julgamento da "Generala". O mistério de "Teresinha da Paixão Gomes, aliás Tito da Paixão Gomes". O estranho burlão que "afinal era mulher". Que vivia com outra mulher sem que esta soubesse a verdade. Creio que estávamos todos a assistir, nesse ano, à irrupção extraordinária de novas realidades em Portugal. Ou apenas a destapá-las.
Foi o ano do julgamento do caso Melancia, do fax do aeroporto de Macau, e de Costa Freire e Zezé Beleza, nas campanhas do Ministério da Saúde, com tudo o que tal levantou sobre a moderna corrupção nas hierarquias dos poderes públicos. Foi o ano de Pedro Caldeira, capturado nos Estados Unidos, e as surpresas vindas do mundo podre da bolsa, da corretagem e do jet set do dinheiro. Foi ainda - 1993 - o ano do Padre Frederico, pároco e professor de Religião e Moral na Madeira, e a descoberta dos extraordinários silêncios da Igreja Católica, encobrindo o abuso sexual de menores.
O julgamento da "generala" revelou-se, no entanto, um caso especial na imprensa e na forma como os portugueses acompanharam as novidades. Uma ternura pícara, um sarcasmo suave que não escondia, visto à distância, algum interesse mórbido pelos aspectos sexuais e íntimos, como disse, há dias, ao JN, a advogada de então de Teresinha da Paixão Gomes. Noutra sala do Tribunal, lembrou Augusta Afonso, as sessões de Carlos Melancia esvaziavam porque os jornalistas corriam para ver Teresinha vestida de homem, andando como homem, falando como homem.
Notícias são notícias. A arguida era acusada de três crimes de burla, pedindo "avultadas somas" em dinheiro que não devolvia, utilizando identidades masculinas para o efeito, numa voz polida e educada, ao longo de quase duas décadas. Além de general, apresentara-se como "doutor" e funcionário superior da Embaixada dos Estados Unidos (ligado à CIA).
Creio, no entanto, que fui ligeiro ao escrever, num balanço jornalístico do PÚBLICO nesse ano: "Poucas vezes andaram os portugueses tão intrigados e divertidos como em Fevereiro de 1993. Foi o tempo de descobrir e digerir a estranha guerra de sexos que o general Tito comandou em pessoa contra Teresinha da Paixão Gomes. O oficial de carreira demonstrou um conhecimento exemplar da ciência da estratégia, pois Teresinha era o próprio Tito e ninguém o soube durante 17 longos anos."
Tal como os trocadilhos são perigosos para a linguagem, não nos devemos precipitar em conclusões levianas.
Quase miséria
Teresinha da Paixão Gomes foi, é quase certo, uma pessoa que sofreu muito. As circunstâncias da sua morte são tristes: doente, recusou acompanhar a sua actual companheira numas mini-férias, e o corpo foi encontrado em estado de decomposição, dias mais tarde, numa casa isolada da aldeia de Carambacha de Cima, Alenquer. Desde que foi condenada a três anos de prisão, com pena suspensa, pelas burlas, e abandonada pela companheira de então (tia da actual), Teresinha isolou-se e acabou a forrar o exterior da casa com chapas de zinco. Suspeita-se que vivia na quase miséria. A Polícia Judiciária afastou a hipótese de crime. Diz-se que um programa recente da TV, que a tentou entrevistar para um especial sobre os "maiores burlões" dos últimos anos, a levou a fechar-se ainda mais.
O psiquiatra e sexólogo Francisco Allen Gomes diz-me que o caso de Tito/Teresinha é uma situação rara: "Pode configurar uma dupla transposição do género. Do ponto de vista clínico, pode corresponder a duas situações: transexualidade ou travestismo. Dizia-se que não há mulheres travestis, que o travestismo é tipicamente masculino, mas sabe-se hoje que não é bem assim."
A ciência põe hipóteses e aprende com a experiência.
"Há casos de indivíduos que têm uma vida como homem e uma outra vida como mulher. Dantes associava-se sempre isto a um mecanismo de excitação sexual. Mas há também os que não têm qualquer motivação sexual. São os travestis de duplo papel."
Isto é, por exemplo, um homem que chega a casa e se veste de mulher para cozinhar, passar a ferro ou limpar muito bem a casa de banho. Nos Estados Unidos, actualmente, lembra Allen Gomes, "têm revistas, clubes, vão a cruzeiros, às vezes com as respectivas mulheres".
Mas a hipótese mais provável é que Teresinha se tratasse de um transexual que não chegou a fazer a transformação física. Só atingiu, por assim dizer, a fase anterior: uso de cintas e faixas apertadas no peito e nas ancas.
"Normalmente as transexuais têm muita dificuldade em aceitar o seu corpo. Isso leva-os a tentarem tirar as mamas e a obterem um falo. Aqui, o mistério é que ela não o fez e conseguiu desempenhar um papel fantasticamente."
Lembrei a sessão de tribunal em que Joaquina, a companheira de Tito desde 1975, enfermeira e co-arguida, jurou que nunca soubera de nada. Que só numa ocasião, ao entrar na casa de banho, vira que algo estava errado. Mas que o "marido" lhe assegurara que estava tudo bem.
Allen Gomes tem um caso mais detalhado, com pormenores inacreditáveis: "Tive uma cliente que durante oito anos viveu com uma mulher... dormiam na mesma cama e tinha sexo com ela. Usava um falo que ela própria fez e que usava sempre, e envolvia-o numa camisa de vénus. Mas nunca se despia completamente e a outra tinha um grande ciúme porque "ele" nunca lhe quis dar um filho!"
"Agora sou respeitada"
Teresinha escolheu a profissão mais masculina que se pode imaginar, creio: general. Contou, no julgamento, que tudo começou com uma brincadeira de Carnaval, em 1975, quando se vestiu de tenente-coronel, e as pessoas levaram a sério. Pouco depois, encomendou num alfaiate uma farda de general, com várias estrelas. Foi com ela a um casamento.
"Mas nos Estados Unidos, na Guerra da Secessão [séc. XIX], houve mulheres que fizeram a guerra toda como soldados-homens e ninguém percebeu!", recorda Allen Gomes.
O tempo deu, e dará, as respostas. As pessoais, as sociais e as médicas.
Teresinha disse, numa das sessões a que assisti, que já se vestia com roupa e aspecto masculino na Madeira, onde nasceu. A primeira vez foi em 1959. Insinuou a existência de um desgosto amoroso dela com um homem, mas, sobre isso, só falaria à porta fechada. Aos 16 anos fugiu da Madeira, os pais deram-na como morta, as autoridades inscreveram-na numa lista de desaparecidos. Só voltaram a encontrá-la nos anos 90, quando Tito, já acusado criminalmente de burla qualificada, sofreu a primeira das grandes humilhações da última fase da sua vida. Foi obrigado a despir-se todo para fotos e, afinal, era uma mulher de 60 anos. Enganara também os agentes da PJ. Tito era o nome do irmão dela, que morreu bebé.
Dizia que nunca pretendeu vigarizar ninguém. Que simplesmente perdera o controlo das dívidas. Ilibou completamente a sua companheira. Revelou-se, escrevi então (com ligeireza editorial, mais uma vez), um "oficial e cavalheiro".
"Não me sinto bem como general, sinto-me bem como homem", disse, nesse dia em que me olhou nos olhos por três segundos, na sala do tribunal. "Agora sou respeitada."
Para Allen Gomes, o caso é exemplar:
"No fundo, era um transexual que veio ao mundo ainda antes de "haver" transexualidade... antes de tempo. O primeiro a ser operado em todo o mundo foi em 1952, na Dinamarca. Um soldado americano, de origem dinamarquesa, que se chamava George e mudou para Georgina."
Outra vez soldados, generais, Guerra da Secessão... Penso em camuflagem, mais trocadilhos.
A "generala", conclui Allen Gomes, "assumiu o seu papel com os recursos que tinha na altura... e bem!"
No final do julgamento, Teresinha aceitou a pena e não pediu recurso. Prometeu que, nos anos seguintes, iria escrever a sua história. Se o fez, gostava de a ler. As autoridades informaram a agência Lusa,
no entanto, que não parece ter deixado documentos ou fotografias pessoais.